sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

PRÓLOGO!

I SHOULD HAVE BEEN A BETTER SON

 Não costumo começar a contar uma história assim, sem me apresentar. Mas, desta vez, devido ás circunstâncias, vai ser diferente, visto que minha identidade não se torna tão importante de imediato.
 Vou começar contando-lhes a história de um par, a história de um homem e de uma mulher, e posteriormente, o fruto de seus interesses em comum. Devo citar, entretanto, que este fruto não é o exato foco de nossa história, sendo apenas um fragmento de algo imensamente maior. Assim como as estrelas, cada fragmento dessa história torna-se importante a ser exposto e devidamente explorado, em busca de formar algo grandioso como um brilhante céu estrelado.
 Ele, um assassino de aluguel. David Pollcheck era o único herdeiro legítimo do nome da família, um rapaz bonito, com seus cabelos castanhos escuros, lisos, caindo sobre seus olhos também castanhos, mas claros. Esbanjava juventude, aparentando certo brilhantismo e astúcia desde que era somente uma criança. No entanto, tanta inteligência vinha vez ou outra acompanhada com um requinte de iniquidade, isto é, aparentava ser uma criança um tanto travessa para a idade. Isso não melhorou com o passar dos anos. O que pareciam apenas travessuras passaram a ser considerados crimes quando David completou dezoito anos.
 Ela, sua parceira, mulher e companheira. Audrey Stuart era de uma família rica, embora não fosse tão tradicional quanto á de David. Era uma menina esperta de aparência delicada, com seus olhos azul-safira que lembravam luzentes cristais. Seus cabelos negros que em ondas bem definidas chegavam à sua cintura, contrastavam com sua pele, lívidamente incomum. Tão quanto sua pele e seus cabelos negros, sua personalidade e sua aparência tinham um contraste ingente. Quando se conheceram, no primeiro ano do high school, descobriram compartilhar de muitos interesses. Era assim que eles descreviam seu amor.
 Após terminarem a escola, David seguiu seu caminho e Audrey também. Podemos dizer que David resolveu se envolver com as pessoas erradas, já Audrey não seguiu um caminho muito diferente. Alguns anos depois, eles se reencontraram e viram que... ainda compartilhavam de muitos interesses. Juntos de novo, Audrey engravidou, e então se casaram. Foi quando comecei a acompanhar de fato a vida do ainda embrião Jared.
 David começou a ser conhecido no que chamamos de submundo, ou entre os criminosos, como exímio atirador, pegando assim alguns serviços. Friamente, executava inimigos daqueles que o contratavam e suas famílias, até que cometeu um deslize, tendo levado um tiro numa luta corporal com uma das vítimas e acabou preso, condenado por ter ligação comprovada com diversos homicídios. Audrey sentia-se culpada pela prisão de David, mas o pior de tudo isso foi perceber que não só ela se sentia culpada, como culpava o filho.
 Após o menino nascer, pode-se ver que tinha herdado os cabelos negros da mãe, tanto como os olhos cor de anil e a pele alva. Nos anos que se passaram, o pequeno Jared Pollcheck cresceu sob meu olhar atento e protetor, mas não podia me ver, nem ao menos aparentava sentir minha presença. Ao contrário de mim, sua mãe não parecia interessada no bem dele. Não me recordo de pelo menos uma vez tê-la visto chamando-o de filho. A infância dele se resumiu em ser cuidado pela babá, e amadurecer sozinho, mesmo ainda muito jovem.
 Quando Jared completou oito anos exatos, eu me vi acompanhar Audrey trazendo-o no colo para a beirada de um barranco, tão íngrime que poderia matar uma criança numa queda. Era uma noite escura, sem estrelas no céu, a lua escondida atrás das nuvens cinzas e escuras aparecia vez ou outra, tímidamente, contrastando a lividez daquela mulher com o cenário escuro e trevoso, revelando seu rosto, tal qual podia comparar-se com as expressões frias de bonecos de cera. Os olhos dele estavam semi-cerrados, o que fazia parecer que estava cansado. Previ o que ela faria; eu tinha esse privilégio. E eu, por algum motivo que jamais soube, tive vontade de interferir. Eu tinha que zelar pelo bem daquele garoto, embora não tivesse nenhum parentesco com ele, embora ele nem ao menos me conhecesse, essa era a minha função. E é claro que eu não podia simplesmente torná-lo imortal, livrá-lo de todos os perigos e interferir sempre. Existem duas vezes em que se é possível escapar da morte, mesmo que indiretamente. Como quando pessoas perdem por segundos um trem, trem este que segundos depois sofre um acidente. Nessas duas vezes, você pode sentir seu coração bater mais forte, um arrepio eriçando-lhe os pêlos, e pode ter certeza: é seu protetor, cuidando de você. Como eu cuidava dele.
 Creio que seja hora de contar quem eu sou. As pessoas nos conhecem de várias maneiras. Por diversas vezes, sentem nossa presença e somos chamados de fantasmas, espíritos, e por outras, quando acreditam que estão protegidos por anjos. De certa forma, estão certos. Estamos sempre lá. Mas por mais que nossa existência dependa daquele a quem protegemos, não seguimos nossas vontades. Seguimos nossas responsabilidades. Uma pessoa tem duas chances de escapar do que chamam de morte, e é o que podemos fazer. E depois disso, deixamos de existir, quando a pessoa morre. Por isso não posso dizer que entendo o que é a morte, nem se ela existe, nem se ao menos existe outra vida. O que eu sou, exatamente, não fica claro nem mesmo a mim, visto que não sou o que imaginam. Não tenho asas, não sei com que forma eu possa me definir. Posso contar-lhes um pouco sobre mim, embora isso não vá acrescentar muito a história.
 Antes mesmo que Audrey engravidasse o destino já havia preparado todas as páginas daquela história e daquela criança a qual eu acompanharia. E eu nasci. Simples assim. Logo soube de quem ia ter de cuidar, e mais, de quem eu criava a fantasia, de algum dia, ser amigo. É claro que nunca fui apoiado, visto que não se tem contato com os que protegemos, não podemos tocá-los, não podemos deixar com que nos vejam, e são raros os momentos em que são sensíveis o suficiente para sentir-nos. Mas acredito que se existimos em função de alguém, cuidamos e protegemos a vida deste alguém, acho que seria impossível não se envolver e não se importar com aquele que precisa, precisou ou precisará tanto de você.
 Jared abriu os olhinhos miúdos devagar, espiando todo o quarto, com a visão um pouco turva. Não havia ninguém a seu lado, via-se somente o branco dos móveis – um pequeno sofá e uma cadeira, além da cama – que se misturava ao mesmo tom frio das paredes. Pouca luz entrava pelas beiradas da persiana da janela, iluminando as pontas dos dedos machucados do menino. Suas mãos moveram-se inutilmente, em busca de alguém que pudesse tocar, mas não havia ninguém. Chamou; uma enfermeira apareceu. Em seguida, um médico. E uma mulher bem arrumada, com os cabelos ruivos presos em um coque, que dizia que ele iria ficar bem. Não sabia quem ela era, como ela podia dizer que ficaria tudo bem? Logo, haviam mais pessoas no quarto do que ele planejara, mas mesmo assim, nunca se sentira tão sozinho. Eu estava lá. Mas ele não podia me ver, nem lembrar de quando, por um momento, interferi no destino.
 Audrey tinha jogado seu filho naquele lugar, deixando-o na escuridão de um bosque iluminado apenas por uma triste lua que observava toda a cena. O menino bateu a cabeça num pedregulho, e desacordado, rolou ainda por alguns minutos entre a lama, caindo perto de uma poça d’água. Ele estava respirando. Segurei sua mão, e aconcheguei-o entre o que eu poderia chamar de braços. Fiz com que resistisse, dei minha alma para isso. Por um momento, dividimos as mesmas sensações e emoções. Eu jamais senti frio, dor, mas naquele momento, éramos um só. Senti algo tão estranho em mim, como se nada fosse dar certo, como se estivesse sozinho. E, de fato, nunca tive ninguém ao meu lado, diretamente, mas isso não me incomodou como estava incomodando agora. Senti o vento bater em mim, e tive a ilusão de que eu existia carnalmente por alguns instantes. Pude sentir a lama em mim, a dor, e nada disso me parecia muito agradável, mas eu persisti firmemente. Por ele eu persisti, e resisti. Eu tinha a curiosidade de saber como aquele garoto cresceria, eu queria vê-lo crescer. Ele merecia viver mais. Eu queria que vivesse mais. E não o deixaria morrer, não ali, abandonado pela única pessoa que ele tinha como referência. Algumas horas depois, um dos seus olhos se abriu, e ele me encarou. Uma sensação esquisita tomou conta de mim, e eu soube que ele estava olhando diretamente para mim. Logo, fechou os olhos novamente e eu ouvi passos. Em seguida, um grito. E logo, as ambulâncias.
 Ele não se lembrava de nada, nem mesmo do que lhe tinha acontecido. Demoraram algumas horas até que a assistente social pudesse conversar com ele. Por todo o tempo, estive do lado dele. Esperei sua reação, mas não sabia como estava se sentindo. Por algum motivo, não sentia mais nada, nada do que eu sentira na noite anterior. Os olhos dele estavam fixos em algum ponto do chão, e ele levantou a cabeça quando ela lhe disse novamente que tudo ficaria bem. Sorriu fracamente, com uma expressão que parecia indecifrável para mim. Não que eu fosse experiente em emoções, já que não as tinha, mas esperava que chorasse. Um momento em que eles deixam com que pequenas gotas salgadas rolem por suas bochechas e sumam em seus queixos. Nunca chorei. Mas sabia que eles o faziam quando estavam tristes. Significava que algo não estava bem... e eu achava que não estava. Mas ele sorriu, e eu não vi uma lágrima em seu rosto por muitos anos.